Morgana Mendes é técnica em artes dramáticas e licenciada em teatro pelo IFFluminense. Atriz, poeta, produtora, iluminadora cênica e bonequeira. Pesquisa teatro de animação e tudo que der pra enfiar nele. Faz arte como o sonho febril de uma criança.
I.
eu dançava tua dança
você dançava olhos e ombros
eu sempre fui um cavalo
por onde andei
você afiava sua faca
eu prestava atenção nos seus dentes
você era algo difícil de olhar nos olhos
por entre
o buraco da meia
II.
o ranger de dentes
e o fechar das portas
e janelas
e outros métodos de correr o ar
do miasma lá fora
não importa mais a peste
suas mãos podem jazer em corpo
arrematado num leilão de outubro
suas mãos podem jazer em corpo
amarrado em memórias de corridas de cavalos
onde não tinham pés
apenas cascos
suas mãos são livres
pra correr o ar
os cavalos tão livres
suas mãos são livres para se deitar
com mãos tão livres
cemitério esse abraço
III.
me olha bem com olhos de lontra:
seu coração é um cavalo.
abraçar, com cuidado:
dessa vez:
usar luvas,
conter o riso,
mencionar a hora de ir embora,
mencionar que esqueci meu suéter,
respeitar o mistério como se respeitam os idosos,
odiar o erro.
historia da expansão americana:
tanto a mercê
me ouve bem com orelhas quentes
seu coração é um cavalo.
beijar, com cuidado:
outra vez,
sentir o sol,
não torcer o piso,
mencionar a hora de ir embora,
mencionar o tanto que me perverte,
insolência programada do respeito conquistado:
odiar o fim.
histórias hedonistas canela e limão
tanto a verter
me escuta
entre s gemidos
sério, presta atenção:
seu coração é um cavalo.
IV.
doninha dona doninha;
meu coração é um cavalo.
a prova é a que se segue:
pela décima vez esse mês
estourei os dedos na quina da porta
por cavalgar no peito
aos mamíferos que possam ouvir chegar;
meu coração é um cavalo.
me ocupei das bulas de remédio
e suas prescrições
relinchava dosagens
trotando uma posologia
todo dia todo dia
se eu pudesse era
todo dia
V.
não sou um cavalo
achei que era quando vi minhas patas
os cascos ali embaixo
o olho pra olhar no escuro
mas eu não sou um cavalo
por mais difícil que seja a palavra
e relinchar pareça uma boa ideia
meio ano versos três
se um dia eu for um cavalo
você de novo entre dois sóis
faremos um piquenique
senhor tempo virá
ele treinará sussurros em nossos ouvidos
faltando três minutos
pra boa tarde
Fotografia: Mercado – George Huebner (Acervo Instituto Moreira Salles).